Câmera lenta.
Era uma noite fria.
A cama desarrumada.
Lázaro, 40 anos, deitado de barriga pra cima.
A luz da tela do celular reflete no seu rosto suado.
A festa de aniversário foi linda.
Bolo de chocolate com chantilly negro.
Família unida e emocionada.
Dois amigos íntimos queridos — os que nunca faltam.
E agora, silêncio.
Uma notificação brilha.
📩 Mensagem recebida: link de um processo judicial do Texas.
📂 Réu: Messias A. Oliveira
📂 Autor: Syd Henderson
Lázaro clica.
O PDF carrega.
Nos autos, lê:
“Eu só queria um recomeço. Syd me tratava como um inútil de pau grande.”
Lázaro ri alto.
Quase se engasga com o café.
Um riso cheio de dentes e alívio.
Aumenta o som no fone com Nina Persson.
🎵 I don't know what you're looking for...
🎵 You haven't found it baby, that's for sure…
O celular vibra de novo:
Link para o site de uma livraria americana.
Messias lançou um livro – aquele puto nem sabe escrever.
500 páginas escritas com inteligência artificial – pensou.
Título: “Fénix: Renascendo das Cinzas” – ele gargalhou.
Lázaro entra.
Rola a página.
Ninguém comentou ainda.
Nenhuma resenha. Nenhuma curtida.
Ele escreve o primeiro, tomado por adrenalina:
📝 Comentário de Lázaro [1 estrela]:
“Uma obra-prima ao retratar o fim da boa vida de um sugar boy paulistano. Profundamente superficial e medíocre. Um reflexo honesto de um homem que sempre soube manipular a pika para ocultar seu vazio e falta de caráter. Parabéns, você conseguiu se superar: conseguiu escrever 500 páginas sem dizer nenhuma verdade sobre você, sua obra mais honesta por isso. Agora, a vida está te dando o troco, bb. Boa sorte com a justiça do Texas, querido. Beijos.”
Envia.
Fecha o notebook devagar.
Pausa dramática.
As mãos tremendo de tensão.
Tinha esperado 10 anos por isso.
Silêncio.
🎵 My heart keeps skipping a beat…
Ele se levanta.
Cabeça girando à mil.
Pega o celular.
Liga para seu advogado.
📞
— “Dr. Uma dúvida. Se eu comentar uma verdade sobre alguém que eu vigio há mais de 10 anos eu posso ser processado como stalker?”
— “Depende. Você assinou?”
— “Claro que assinei.”
— “Que merda, cara. Me manda o print.”
— “Já te mandei. E, te amo.”
Tela preta.
Fade out com o refrão de Nina Persson explodindo nos fones:
🎵 My favourite game…
🎵 My favourite game…
🎵 My faaaaaavourite gaaaame…
ao som de “Spit” – Kittie + “Born Slippy” – Underworld
O corpo não aguenta mais ficar parado.
O texto grita.
A alma ruge.
Lázaro escreve como quem enfia a faca com elegância.
Escreve como quem goza com sangue na língua e na mente.
Escreve como quem dança pelado no meio da BR 101 às 3 da manhã só pra provar que ainda tá vivo no meio do frio.
Escreve sem pontuação.
Porque a vírgula virou freio.
E ele não quer mais frear.
Quando escreve, Lázaro entra.
Transcende.
Cava o próprio túmulo com palavras dilacerantes.
Se afoga no próprio texto.
Se entrega a frases que cheiram a rosa, suor, sal e gilete.
E sai do outro lado renascido, suado, tonto, curado por minutos.
Criar é ritual.
Criar é droga.
Criar é manual de sobrevivência.
Criar é como morrer por controle remoto e voltar antes do enter.
Fantasia número 7:
Organizar a própria morte como quem organiza uma despedida de solteiro.
Uma rave de jazz secreta, só pros íntimos.
Os que ficaram.
Os que amaram.
LSD e baseado na entrada.
Espumante pra batizar.
Uma pista de dança com poemas nas paredes e vídeos caseiros da infância editados ao som de Björk.
Ele se despede em transe.
Dança de olhos vendados.
Se despede de cada um com beijo na boca carregado de MD e uma palavra mágica.
Depois…
entra nu no mar com pedras nos bolsos e diz:
“me deixem aqui, tá tudo certo.” - e afunda.
Messias o trocou por um sugar daddy gringo.
Sua piroca abre caminhos.
De terno bem cortado, green card e passaporte europeu.
Lázaro?
Continuava aqui.
Bipolar.
Solteiro.
Brasileiro.
Queer.
Pobre.
A adrenalina da vingança subia cada vez que via as fotos.
Paris, Veneza, Cape Town. Essa puta não parava.
E ele, na Lapa, suando entre mendigos e beatmakers.
Lázaro queria gritar:
— "Você me trocou por conforto, seu covarde estético!"
Mas só escrevia.
Porque escrever era a única forma de vingança que ele dominava.
E sabia que um dia…
Messias ia se ver num conto arrombado,
com o cu na mão,
jogado fora como ele um dia foi, afinal
juventude passaria e as pikas maiores,
sempre vencem no final.
Adrenalina também era isso:
Correr por entre carros na ponte Rio-Niterói só para um pulo fatal.
Fazer sexo em escadaria com alguém que mal lembra o nome, mas reconhece o perfume.
Enfrentar policial em blitz com sua cara de branco, carregado de drogas e pupilas dilatadas, passando impune e sorridente só por ser invisível, bruxão.
Dizer sua opinião ácida e impopular em público, com convicção.
Ligar pra ex-amigo só pra dizer:
“eu ainda tô vivo, cuzão.”
Lázaro não queria só viver.
Não nasceu para ser escravo do mercado, nem do governo.
Ele queria ferver e desaparecer rápido.
Queimava tudo ao redor só para ver o que sobrevivia ao seu calor.
Porque viver em paz parecia tédio demais.
Ele queria viver em estado de Transe & Arte.
E isso, às vezes, significava morrer um pouco várias vezes, todo dia.
Pra nascer e renascer em cada texto,
em cada surto,
em cada fúria lúcida,
como um profeta punk de si mesmo.
[FIM DO CAPÍTULO 6 – ADRENALINA]
ao som de “Bring Me To Life” Evanescence
Dr. Sávio entra.
Terno meio amarrotado, olhar de quem já viu coisa demais.
— "Lázaro…"
— "Fala, doutor."
— "Recebi o print. Li tudo. Aquela frase do ‘sugar boy’ é ouro sujo, parabéns."
— "Mas…?"
— "Mas tem um detalhe. Eu fui até o site e o único comentário publicado é de um tal de... Raphael Santoro. Você me enganou?"
Lázaro acende um cigarro com a ponta do dedo tremendo de satisfação.
— "Claro que não, doutor. Raphael Santoro... é Messias. Quer dizer, era o nome de guerra dele, sabe. Quando ele morou em Londres e se prostituía feito uma cadelinha no cio enquanto dizia que fazia arte e intercâmbio."
Dr. Sávio para. Olha fixo. Desacredita.
— "...Você tá falando sério?"
— "Sim. Ele fazia filme pornô pra uma produtora de Berlim. Gay. De fetiche. Vi ele em pelo menos três vídeos. Rodeado de caras com paus gigantes, transando no automático, o olhar vazio de substâncias."
— "Jesus Cristo..."
— "Não. Raphael Santoro."
— "Então... o nome do comentarista ser esse..."
— "... é uma cutucada na jugular, doutor. Só Messias vai entender que fui eu. O mundo dá voltas, mas só ele vai saber que foi eu. E não vai poder provar."
O advogado abre a boca. Fecha. Ri. Coça o queixo.
— "Rapaz, você é completamente maluco."
— "Mas tô limpo judicialmente, né?"
— "Tão limpo quanto alguém que cavou a cova do ex com comentário anônimo."
Pausa.
— "Relaxa, doutor. Esse foi só o prólogo. O inferno mesmo...
começa no próximo capítulo."