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🫥 CAPÍTULO 5 – SOLIDÃO 

ao som de “Ironic” – Alanis Morissette 

 

A música é alta. 

 

O bar está cheio. 

 

As conversas se atropelam. 

 

Os copos se tocam. 

 

E todo mundo fala com todo mundo, ao mesmo tempo, como se o mundo fosse explodir em alegria. 

 

Lázaro está ali. 

 

No canto esquerdo da sala. 

 

Em pé. Copo na mão. Camisa preta e meio suado. Sorriso ensaiado. 

 

Ele se mexe como quem dança por dentro. 

 

Mas por fora, só se equilibra. 

 

Ele olha para todos os grupos. 

 

Repara nos paus, nas bundas, nos dedos, nas unhas ruidas, nos lábios, nos olhos, nos gestos, nas frases cortadas. 

 

Arregala os olhos — aqueles olhos castanhos absurdamente claros — como quem participa. 

 

Move a testa em ondas dramáticas, faz caretas simpáticas, balança a cabeça como quem concorda com tudo. 

 

Mas ninguém o chama pelo nome. 

 

Ninguém pergunta como ele está de verdade. 

 

Ninguém quer saber qual droga ele tomou hoje para sobreviver ou qual poema ele escreveu de madrugada. Se ele tentou se matar recentemente. 

 

Lázaro é o fundo da cena. 

 

O plano B do enquadramento. 

 

O “ih, nem vi que você tava aqui!” 

 

Dentro da cabeça dele, uma narração nunca para: 

 

— "Essa menina que fala alto vai terminar o namoro em três meses, pela quinta vez apaixonada por pika e porrada." 

— "Esse cara que só fala de si nunca vai produzir nada que preste, é muita luz branca que cega e incomoda." 

— "Esse riso dessa mesa inteira é falso, químico ou carente." 

— "Essa amiga só se aproxima quando tá chapada e fica perdida." 

— "Esse silêncio aqui dentro tá mais alto que esse techno du caralho."

 

Enquanto todos vivem a cena, 

 

Lázaro a dirige e comenta. 

 

Como se fosse uma peça teatral da qual ele é apenas o continuista ausente. 

 

Ele nunca foi o extrovertido. 

 

Era o maluco beleza. 

 

O queer tolerado. 

 

O suicida vigiado — sempre com um olho externo sobre ele, como se sua vida dependesse de uma patrulha invisível e moral. 

 

E ali, bem no centro da festa, com gente esbarrando nele e dizendo “foi mal”... 

 

Ele se sentia mais sozinho do que no quarto escuro de quando era adolescente. 

 

Porque pelo menos ali ninguém fingia que ele fazia parte. 

 

Na festa, todos eram personagens. 

 

Ele era só o espectador real. 

 

E ninguém pergunta como tá o espectador, né? 

 

Porque ele não fala. 

 

Só observa. 

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II. Pós-festa – o copo pela metade 

 

Depois da festa, Lázaro caminha pelas ruas como um sobrevivente de algo que não aconteceu. 

 

A cidade respira por neon e bitucas de cigarro Malboro, Gudan e Gift. 

 

O glitter da testa ainda brilha. 

 

A calça ainda cheira a fumaça e perfume barato. 

 

Mas por dentro, 

 

o vazio é absoluto. 

 

Ele volta pra casa em silêncio. 

 

Senta na privada com a roupa ainda grudando na pele. 

 

Desce o feed como quem reza um terço moderno. 

 

Todo mundo parece tão vivo nas fotos. 

 

Tão dentro de alguma coisa. 

 

Lázaro está online. 

 

Mas ninguém pergunta: 

 

“quer conversar sobre se matar?” 

 

 

III. Solidão com o corpo de outro 

 

O sexo foi bom 

 

Suado, animalesco, quente, sincero. 

 

Mas logo depois o cara acende um cigarro e diz: 

 

— “Você é diferente, né?” 

 

E Lázaro responde: 

 

— “Não. Só sou de verdade.” 

 

Quando o outro vai embora, 

 

fica um cheiro de mofo no ar e um vazio pior que a própria fome. 

 

Ele deita nu. 

 

E pensa: 

 

A solidão tem cheiro de cigarro e lençol frio. 

 

 

IV. A casa como caverna 

 

Lázaro passa dias sem falar com ninguém. 

 

Ele não se isola por capricho. 

 

Ele só não quer incomodar. 

 

Aprendeu a sobreviver sem pedir ajuda. 

 

A sobreviver comendo voz e engolindo presença. 

 

A geladeira geme. 

 

A planta secou. 

 

O copo em cima da mesa já virou instalação artística. 

 

E mesmo assim, ninguém bate na porta, graças a Deus. 

 

Nem pra perguntar: 

 

"Você ainda tá vivo aí, cara?" 

 

Afinal, eu nem saberia ainda a resposta. 

 

 

V. A escrita como refúgio 

 

A caneta é a única coisa que ainda responde. 

 

O cursor do Word pisca como um sinal de batimentos. 

 

O texto é o lugar onde Lázaro ainda existe por completo, com suas complexidade de camadas. 

 

Onde pode ser vulnerável sem ser interrompido, porque tudo ali é processo. 

 

Onde pode gritar sem assustar ninguém. 

 

Onde pode morrer mil vezes e voltar em negrito, itálico, capslock.

 

Onde ainda pode ser amado — nem que seja por alguém que ainda não chegou, inventado. 

 

 

VI. A solidão como escolha 

 

Talvez a solidão seja também o espaço da cura. 

 

Onde ninguém exige, ninguém cobra, ninguém julga. 

 

Um lugar mágico onde o silêncio é mais gentil do que qualquer palavra errada. 

 

Talvez a solidão não seja ausência. 

 

Talvez ela seja só presença demais de si mesmo. 

 

E isso, às vezes, é insuportável. 

 

Mas também é libertador. 

 

 

VII. Fecho – uma frase que ainda ecoa 

 

“Você é intenso, né?” 

 

Sou. 

 

Porque ser raso nunca me salvou.

 

 

[FIM DO CAPÍTULO 5 – SOLIDÃO] 

 

⚡️ INTERLÚDIO – ENTRE SOLIDÃO E ADRENALINA

ao som de “Cali Dreams" (feat. The Beach) – Vintage Culture  

  • Quando a solidão começa a gritar, 

 

O corpo responde com velocidade. 

 

Com exagero. 

 

Com impulso. 

 

Com doses dobradas e carências reforçadas. 

 

Com três tragadas a mais do que o necessário. 

 

Porque o silêncio já não basta. 

 

Porque a dor precisa de palco. 

 

Porque o mundo precisa saber que você ainda se move. 

 

E então… 

 

A rave vira missa. 

 

A rua vira fuga. 

 

A droga vira afago. 

 

O gozo vira prova de existência. 

 

Você quer esquecer que está só. 

 

Mas acaba lembrando mais ainda que está vivo. 

 

Só que pelo menos agora… 

 

Com a música alta, a pulsação no limite e a pele arrepiada — 

 

Você sente alguma coisa. 

 

E isso já é melhor do que nada.