ao som de “Arankai” - A good day to die
Lázaro passa o dia inteiro limpando a casa.
Ajeita a sala com luz baixa, balões roxos e vermelhos, chapéuzinhos espalhados pelo sofá.
Um pequeno cartaz feito à mão, com glitter e canetinha:
“Festa de Aniversário do Lázaro – Hoje, 20h. Só pra gente que se ama.”
Na playlist: só música de pista.
No congelador: uma torta de maracujá.
Na bandeja: brigadeiro enrolado com granulado colorido.
Dois baseados prontos no cinzeiro.
Mais um na manga.
Tudo feito com carinho.
Tudo pronto pra dividir.
Durante a semana, ele tinha enviado um convite no grupo do WhatsApp.
Uma arte bonitinha, feita por ele mesmo, com filtro VHS e texto engraçadinho:
“Vai ter festa, sim! Vai ter bolo, doce e baseado open bar. Tragam seus corpos e um abraço gostoso. ♥️”
Todo mundo curtiu.
Teve risada.
Teve “ai, vou com certeza”.
Teve “você merece, meu amor”.
Mas no dia…
Ninguém veio.
Só um casal passou, por acaso, pra buscar um casaco esquecido.
Nem sabiam da festa.
Ficaram dez minutos.
E foram embora antes do parabéns.
As 21h, Lázaro acendeu o decimo baseado.
Sozinho.
Bateu palmas pra si mesmo.
Tirou uma selfie com um chapeuzinho torto e engoliu um ácido.
Às 22h vieram as mensagens e a bad:
— “Feliz aniversário, meu irmão!”
— “Hoje foi uma loucura aqui, acredita?”
— “Ai, esqueci que era hoje, desculpa.”
— “Tava com uma crise de coluna, mano. Mas te amo!”
E então, o silêncio.
A vela do bolo foi apagada sem sopro.
Só a fumaça subiu.
O brigadeiro sobrou.
O doce ficou gelado demais.
O baseado queimou lento.
E Lázaro entendeu:
não é que ninguém se importasse com ele.
É que ninguém se importava o suficiente para sair do seu conforto.
ao som de “AmarElo” - Emicida (Sample: Belchior - Sujeito de Sorte) part. Majur e Pabllo Vittar
Primeiro sumiram os isqueiros.
Depois, os amigos e abraços.
Depois, as respostas.
Depois, a fé.
Ele comia na minha casa.
Dormia na minha cama.
Fumava da minha maconha.
Me chamava de amor.
Quando se mudou pro Rio, virou besta.
Um sumiço elegante, com desculpas vazias e perfis bloqueados.
Eu perguntava: "O que aconteceu?"
E ele dizia: "Nada. Só a vida."
Como se a vida explicasse qualquer abandono.
Como se o fato de eu ser instável emocionalmente ou financeiramente
justificasse não ser mais digno de afeto.
Mas eu avisei desde sempre: eu sou instável.
Eu avisei.
O amigo anarquista me chamava de irmão.
Me acompanhou em delírios, utopias, ocupações, fogueiras e risos.
Até o dia em que viu meu surto.
Me ajudou na internação compulsória.
E sumiu.
30 dias depois, eu voltei.
E ele já não me esperava.
Disse que não era sobre grana.
Sobre um desentendimento interno.
Mas nunca teve coragem de me dizer claro:
"Eu não consigo lidar com tua dor."
E então, me excluiu.
Das redes.
Dos rolês.
Da vida.
E isso doeu tanto quanto perder um noivo.
Pedi mil vezes: para de beber, pai.
Ele ria.
Meu pai morreu como viveu: sem ceder.
Sem saber quanto custava criar filhos.
Sem saber quanto custava o amor.
A gente cuidava dele enquanto ele afundava.
E ele chamava isso de “vida normal”.
Faltava remédio.
Faltava carne.
Faltava paz.
Mas ele queria cachaça e feijão batido.
E ninguém o impedia.
Nem o amor.
Eu sou filho da classe trabalhadora.
Branco. Neurodivergente. Bipolar.
E invisível para a esquerda que me formou.
Nenhum Lula falou de mim.
Nenhuma Dilma me viu.
Nenhum Boulos me nomeou ou,
Pastor Henrique me acolheu.
A esquerda me abandonou porque
eu não rendia voto.
Eu não cabia na estética do povão.
E eu gritava: "eu também sou povo, caralho!"
Mas ninguém ouvia, mimimi.
Só ecoava.
Tentei orar.
Fui expulso dos templos.
Fui homem gay na igreja errada.
Fui agnóstico no terreiro certo.
Fui só um corpo que amava e gozava fora do script.
Me disseram que Deus me amava.
Mas me queriam curado ou ressucitado do inferno.
Me disseram que eu era um espírito de luz.
Mas me queriam limpo.
Então parei de procurar nas escrituras.
E esse Deus bobo sumiu.
Eu mesmo fui embora de mim.
Me destruí tantas vezes achando que seria breve.
Me abandonei por querer viver rápido, gozar tudo, sumir cedo.
Eu era um espetáculo de autodestruição.
E cobrava ingresso.
Mas no fundo, só queria colo.
Só queria um “fica, eu te banco”.
Minha mãe nunca me abandonou.
Mesmo quando eu me cortava.
Mesmo quando eu sumia.
Ela deixava o prato feito.
Ela rezava baixinho.
Ela dizia: "Você vai conseguir ou você voltar. E eu vou estar sempre aqui."
E estava.
Então eu voltei, sempre volto.
Voltei ferido.
Mas vivo.
Voltei sozinho.
Mas escrevendo.
Voltei chorando.
Mas dançando.
Porque mesmo que tudo me falte…
Eu ainda tenho palavras & Você.
E isso me salva.
[FIM DO CAPÍTULO 4 – ABANDONO]
ao som de "Fake Plastic Trees" - Radiohead
Depois que todo mundo vai embora,
o silêncio fica confortável demais.
Primeiro, assusta.
Depois, abraça.
Você para de esperar respostas.
Para de insistir.
Para de mandar textão.
Para de acender vela pra gente viva.
Só deixa o mundo quieto.
E ouve os estalos da casa vazia.
Descobre que a ausência não grita.
Ela sussurra.
“É só você agora.”
E pela primeira vez,
talvez isso não seja o fim.
Talvez seja o começo de outra coisa.
A solidão chega sem bater.
Mas quando você abre a porta…
Ela já tava morando ali há muito tempo.