Tela escura. Barulho de respiração.
Uma batida de coração ecoa, abafada.
Lentamente, a imagem surge:
Lázaro está de joelhos no meio de um campo aberto.
A terra é vermelha.
O céu, roxo.
No horizonte, postes de luz em forma de cruzes, pendendo em ângulos tortos.
Chove lentamente sobre ele — mas a água cai pra cima, como se a gravidade tivesse perdido o juízo.
Ele está nu.
Coberto por um manto feito de lona de festival e terços quebrados.
Na boca, um cigarro aceso. Nos olhos, delírio.
À sua frente, uma figura feminina flutua.
Uma santa translúcida, com véu de rave e coroa de flores murchas.
Ela tem tatuagens nas mãos e segura um terço que brilha em neon rosa.
Quando ela fala, sua voz é a de todas as mães do mundo, ao mesmo tempo:
— Você é meu filho?
Lázaro não responde. Chora.
A santa então abre a boca e vomita uma fita K7 em chamas.
A fita cai aos pés de Lázaro.
Ele pega. Aperta contra o peito.
A fita começa a girar sozinha.
Projetando som sobre o céu de imagens da vida dele:
o enforcamento, o banheiro químico, a dança no escuro, a ligação no orelhão, a mãe chorando em silêncio.
O céu começa a se incendiar em forma de labaredas com os nomes das nove tentativas.
Lázaro se levanta.
Grita para o céu:
— PAU NOSSO QUE NOS DAÍ HOJE!
— SE FOR PRA MORRER, QUE SEJA DANÇANDO!
O chão treme.
A santa explode em mil luzes de LED sagrado.
Cada fragmento dela entra no corpo de Lázaro como fagulhas.
Ele queima.
Ele grita.
Ele goza.
E a voz da santa volta, dentro dele agora:
— Vai.
Vai, meu filho.
O mundo ainda vai te machucar.
Mas eu te fechei.
Tu é meu.
Dança.
Corte seco para preto. Som de sirene ao fundo. A batida de “Like a Prayer” da Madonna começa, distorcida.
... uma vez eu rezei para nunca mais.
Eu pedi para todo mundo do mundo ser feliz e abençoado para sempre,
mesmo que eu não rezasse mais por isso. E então. Rezei mais uma vez e agradeci por tudo,
Hoje & Sempre. Depois disso, não precisei rezar mais,
porque Deus não é surdo e tem memória de Elefante, bb.
Silêncio.
Ela me ungiu com água benta na testa enquanto eu dormia.
Passou cinzas de um fogão a lenha da bruxa do mato
e me cruzou com um facão na mão.
Enterrou uma santinha que achei no jardim de infância,
no bolso da minha calça da escola.
Pendia um terço na cabeceira da cama.
E toda vez que eu saía, ela pedia baixinho:
“Nossa Senhora, fecha o corpo do meu filho.”
Lázaro cresceu com o corpo blindado.
Nenhuma bala perdida. Nenhum osso quebrado.
Mas o que estava dentro — o que queimava por dentro — isso, nem a santa Mãe dava conta.
Só ele mesmo sabia o quanto já tinha implodido por dentro.
As nove vezes que tentou sair do mundo pela porta dos fundos.
E na nona, quase foi.
*A corda no pescoço.
O salto.
O giro.
O tempo parou num looping silencioso.
E então — um tapa.
Um tapa invisível, quântico, de outra dimensão.
O corpo girou 360º e parou, enforcado.
A corda arrebentou.
Lázaro caiu.
De cara no chão.
Dentes quebrados.
Vida inteira ainda, menino.*
Ele acordou como se tivesse sido exorcizado de si mesmo.
“Não era sua hora”, sussurrou uma voz dentro do ouvido esquerdo.
Ou talvez fosse só a memória da mãe.
Ou da santa. Vozes, eram vozes, definitivamente...
Um ônibus fretado. Compromisso público. Lázaro como excursionista, conduzia tudo. Raves, fumaça, centenas de pessoas, ácido, corpos pulsando ao som de 145 bpm.
Mas aquele festival era maldito.
Ayuaska, chão de cerrado, céu estrelado, polícia federal, fuzil na cara.
Mais de 200 presos. Jovens místicos do narcotráfico delirante.
Pessoas com sorrisos quebrados e olhos revirados.
Passageiros “bomba trancers” surtando, querendo o sangue de Lázaro. Ao meio-dia, o matariam em pleno dancefloor lotado.
Um caminhão surgiu, desgovernado, veio em nossa direção.
Ninguém correu.
O tempo esticou. Premunição igual ao filme.
Lázaro achou que ali seria o fim, quando recebeu um aviso;
Pula, que o caminhão eu desvio sozinho – sem lógica.
Como se tivesse sido empurrado por uma força invisível. O caminhão rolou, ribanceira abaixo. Nenhum ferido. Morte interrompida. Graças, aleluia Mãe Divina.
Ele correu pro banheiro do ônibus.
Tremeu.
Chorou.
Rezou.
“Nossa Senhora, me tira daqui, desse inferno de Alto Paraíso artificial.”
Ligou pra mãe. Anos 2000. Orelhão. Uma ficha.
— Mãe, o que eu faço agora?
— Reza, meu filho. Reza.
E ele rezou. Como nunca.
Com os joelhos trêmulos sobre o piso imundo do banheiro químico.
Rezou como se estivesse em Aparecida.
Rezou como se fosse o último ato antes do fim.*
*Fé não era templo.
Fé era aquele banheiro imundo.
Fé era o tapa invisível que o impediu de morrer.
Fé era a mãe dele do outro lado da linha.
Fé era sobreviver à própria morte.
Fé era não enlouquecer depois de rezar.
Fé era seguir vivo, resistente, mesmo sem querer.*
*Pau Nosso que nos daí hoje,
Fechei os olhos. Abri a boca.
Acendi uma vela dentro do peito; engoli.
Pedindo, eu sugeri finalmente:
Que se for pra morrer, que seja rápido. Amém!
Mas se for pra viver,
que Nossa Senhora continue segurando meu corpo
ignorando meu palavreado chulo,
com as mãos de todas as Mães sobre mim
que ainda choram por filhos que não voltam.*
Eu sou o que voltou.
Eu sou o que sangrou e ficou, vivo.
Eu sou o que caminhou nas Sombras e se fez Luz.
Eu sou o corpo fechado que ainda Dança & Goza.
[FIM DO CAPÍTULO 2 – FÉ]
Depois de sobreviver à morte nove vezes, Lázaro entendeu:
os milagres nem sempre caem do céu.
Às vezes, eles aparecem na forma de um óculos emprestado,
de uma água dividida,
de um colo improvisado no chão batido de um after.
Ele ainda ouve as vozes da santa.
Ainda acende velas e baseados.
Mas agora, reconhece outros tipos de oração:
— Fica aqui até a bad passar.
— Eu não te deixo sozinho.
— Respira comigo, tá?
— Você quer que eu te abrace ou fique em silêncio?
A fé salvou seu corpo.
Mas foi a amizade que começou a salvar o resto.
[CAPÍTULO 3 - AMIZADE]