Mãe Sarah esperava irritada um Sedex 10 que não chegava, enquanto na linha telefônica aguardava uma atendente que não atendia;
- Finalmente minha filha, finalmente. Me mande um técnico com urgência, tenho pressa, estou sofrendo sem luz nesse calor insuportável há mais de 24 horas. Sou uma senhora idosa minha filha, i-dooo-sa e com as contas em dia, é bom lembrar.
Mãe Sarah devia, ter uns 54 anos, de idade. De dívidas já não se lembrava mais. Ela, uma mulata gordinha de quadril avantajado, toda arrochada dentro de um vestidinho branco rendado, manchado com o transbordar de suor salgado, roía as unhas descascando o esmalte vermelho enquanto seu cigarro Derby queimava ao lado de um copo com restos de café e guimbas fedorentas que se espalhavam sobre sua mesa redonda, onde jogava tarô, búzios e via o futuro numa bola de cristal iluminada – e que agora estava apagada. Seus olhos traçavam um repetitivo percurso exato com paradas pré determinadas entre a lâmpada, o relógio e o cigarro em suas mãos.
O dia passou. O Sedex 10 falhou, o técnico não apareceu e a luz continuou a faltar. Seu maço de cigarros acabou e nenhum cliente batia a sua porta há dias. À noite, Mãe Sarah amassou então 15 pétalas de rosas brancas num prato nunca antes utilizado, pegou umas fitas douradas e enrolou em uma chave de ferro, arrancou 10 fios de cabelo branco desbotados de uma tintura que nunca cumpre o prometido na embalagem e dentro de uma garrafa de vinho tinto, sacudiu. Depois, escreveu algumas frases mágicas com um batom preto por detrás de cartazes amassados do tipo “trago a pessoa amada” e levou tudo para uma encruzilhada, numa grande bandeja de prata. Quando bateu meia noite; Mãe Sarah cantou, evocou seus guias espirituais, chorou e dançou em volta de um círculo em chamas.
Antes de se deitar, banhou-se por horas com conhaque e água fresca em sua banheira esverdeada escutando o disco preferido; No reino de Nanã Burukuê.
Ao se deitar, o sono também não veio.
Cansada, talvez de um poder que parecia não servir para o uso pessoal, Mãe Sarah tomou um Valium e catapoft. Apagou em menos de 15 minutos.
Saravá!
ao som de “Losing My Religion” – R.E.M.
📽️ CENA DE ABERTURA – PLANO GERAL / IGREJA VAZIA
A câmera passeia lenta por dentro de uma catedral gótica.
Os vitrais estão rachados. As velas derretidas. O altar coberto por pó.
No púlpito, Lázaro, sozinho, de terno barato e olhos arregalados.
Na mão, um terço partido. No bolso, um comprimido vencido.
Ele grita para os bancos vazios:
— “ALGUÉM AÍ ME OUVE?”
O eco responde:
— “ouve… ouve… ouve…”
Ele ri.
Dá meia-volta.
Vai embora sem fechar a porta.
🎵 “That's me in the corner… That’s me in the spotlight… Losing my religion…”
Ela dizia ver o futuro.
Mas não viu a própria geladeira vazia.
Nem o despejo chegando por e-mail.
Fazia feitiço pra cliente engravidar…
Mas o útero dela chorava em silêncio toda madrugada.
Lázaro conheceu a bruxa num curso de tarot na Lapa.
Ela dizia que ele era especial.
Mas cobrava R$ 70 a hora, sem choro.
— “Você tem o dom.”
— “E você, tem Pix?”
Quando Lázaro pediu um feitiço de amor,
ela respondeu:
— “Isso eu não sei fazer. Mas posso tentar abrir teus caminhos.”
Os caminhos continuaram fechados.
Mas agora com cheiro de alecrim.
Ele se dizia mago do caos.
Invocava deuses antigos.
Postava sigilos no Instagram com legendas em latim.
Lázaro acreditou.
Fez pacto de sangue com glitter.
Ficou três dias sem gozar, como mandava o ritual.
Mas o mago ainda devia o aluguel.
Morava com a avó.
E vendia brinco de resina esotérica na feirinha vegana de Ipanema.
— “O universo vai me recompensar, irmão.”
— “Vai sim. Mas primeiro ele te destrói.”
No final do curso de magia prática,
o mago pediu vaquinha no Twitter.
Pra comprar passagem e fugir do ex.
Nem todo feitiço é reversível.
Principalmente os que a gente joga em si mesmo.
Lázaro foi num centro espírita.
Queria ouvir uma mensagem do além.
Recebeu uma senha. Número 72.
Esperou seis horas.
Na hora do passe,
um senhor de blazer azul olhou fundo nos olhos dele e disse:
— “Você precisa ter mais fé, meu filho.”
Lázaro riu.
“Era isso que os mortos queriam me dizer?”
Fé ele tinha.
O que faltava era crédito na TIM e um lugar pra chorar em paz.
O médium era ex-gerente do Bradesco.
Viu Jesus na cozinha durante um AVC.
Abriu um canal com o além — mas só pegava o mesmo espírito de sempre:
um médico alemão que não falava português e prescrevia camomila.
Lázaro foi embora com a cabeça pesada.
Decepcionado.
O morto não dizia nada útil.
O vivo menos ainda.
Na missa das 18h,
o padre subiu ao altar mancando.
Com o olho fundo e a pele falhada.
Lázaro sentou no último banco.
Esperava escutar algo como:
“Deus te ama apesar de tudo.”
Mas o que ouviu foi:
— “Deus está em silêncio. Como sempre esteve.”
Na homilia, o padre tossiu sangue.
Parou por alguns segundos.
Depois continuou, como se cuspir a própria morte
fosse parte do rito.
Ao final, Lázaro se aproximou e perguntou:
— “Posso orar por você?”
O padre respondeu:
— “Você pode. Mas será que Ele vai escutar?”
E ali, naquele instante,
Lázaro entendeu que até os mensageiros
não sabem mais o que estão anunciando.
Lázaro tentou orar de novo.
Ajoelhou no quarto. Acendeu vela. Releu Salmos. Buscou no YouTube a reza certa.
Mas o vídeo tinha anúncio.
Oração interrompida por propaganda de fatiador de legumes da China.
Nos comentários:
“Essa oração mudou minha vida, obrigada irmã Claudete 🙏”
“Chave PIX pra ofertar: 21969…”
Lázaro gargalhou. Ou chorou, ninguém soube.
Deus agora usava Wi-Fi e vendia curso de milagre em três módulos.
E ele ali, sem sinal. Sem fé.
Sem cashback espiritual.
Uma cigana no calçadão virou pra ele e disse:
— “Você tem uma energia linda, mas tá bloqueada.”
Ele riu.
Disse que não precisava de tarô.
Já sabia que o louco vinha invertido,
que a torre já tinha caído,
e que a morte era só uma quarta-feira normal.
Ela insistiu.
Tirou uma carta:
— “Aqui ó, o enforcado.”
Lázaro respondeu:
— “Esse sou eu nos últimos anos.”
E saiu andando com o baralho inteiro na mente,
sem precisar pagar.
O futuro já era um spoiler com gosto de mofo.
Pai nosso que estais em canto nenhum,
passando pano pra fascista e pra pastor ladrão.
Santificado seja o algoritmo.
Venha a nós o teu engajamento.
Seja feita tua influência,
na Terra como no fake do céu.
A sabedoria do dia nos é negada,
e a poesia virou filtro estético em polegadas.
Perdoai nossas verdades afiadas,
assim como ignoramos os coachs emocionais.
E não nos deixe cair na esperança fácil,
mas livrai-nos da autoajuda.
Amém — ou o que restou disso.
ao som de “Freak On a Leash” – Korn
Tem dias que o corpo vai,
mas a alma fica.
Fica deitada, pesada,
debaixo da cama,
presa em alguma dobra suja do tempo.
Depois de tanto gritar contra o céu,
e não ouvir nada de volta,
vem um silêncio que não consola — só pesa.
Um vazio úmido se instala.
Começa no peito, escorre pros olhos,
e afoga os músculos.
Você tenta levantar.
Mas é como se o chão estivesse te sugando de volta
pra dentro da própria carne.
O ceticismo já fez o estrago.
A fé murchou.
A revolta cansou.
E o que sobra…
é só esse gosto metálico na boca.
Esse cansaço de existir no modo sobrevivência.
Você não quer morrer.
Mas também não quer mais levantar pra explicar que está vivo.
O mundo segue com seus boletos, timelines e sorrisos falsos.
E você?
Você é só um erro de sistema.
Um freak à beira do colapso.
Um glitch que a sociedade tenta apagar com likes e mantras vagos.
E ainda assim…
você respira.
Mal.
Mas respira.