Lázaro, ainda criança, deitado na laje quente da casa.
Olhos vidrados no céu.
Imaginava que, por cima das nuvens, morava um parque de diversões.
Ali estavam os mortos felizes.
Principalmente as crianças.
Correndo de mãos dadas com Deus, rindo como se o tempo tivesse parado.
Montanha-russa com anjos, algodão-doce eterno.
Nada de castigo.
Nada de dor.
Só o pós-vida como uma festa de aniversário sem fim.
Mas então ele cresceu.
E disseram que o céu era outro.
Que havia regras, hierarquias, pecados, testes.
E castigos. Muitos.
Na doutrina espírita, descobriu o tal Vale dos Suicidas.
Uma colônia de espíritos condenados, vagando em sofrimento até o resgate.
Ali, a dor não termina com a morte — ela só ganha outro CEP, vinda de um Deus vingativo.
Lázaro achou aquilo cruel.
Um sistema burro para um Deus tão grande.
Uma pedagogia de dor para um Pai dito amoroso.
Aos poucos, a fé virou suspeita.
A oração virou silêncio.
E o céu, um conceito fora de moda.
Foi na ciência que encontrou sua última certeza:
quando a gente morre, o cérebro apaga.
A consciência evapora.
Nada permanece.
O “eu” vira átomo, lixo orgânico, dissolução.
E foi aí que Lázaro entendeu.
Que se a morte é o fim absoluto…
então morrer não é só matar a si mesmo.
É matar o mundo.
É assassinar a única chance de sentir o cheiro da comida da mãe.
De ouvir o riso dos amigos.
De tocar a pele da família que o ama, mesmo imperfeita.
Morrer era sumir do único filme onde ele ainda era protagonista.
Mesmo que ferido.
Mesmo que no limite.
Mesmo que odiando o roteiro.
Ele olha para cima, dessa vez adulto.
O céu continua lá.
Azul, imbecil, inocente.
Mas agora ele sabe:
não existe outro parque de diversões.
Só esse aqui.
Com fila, com dor, com risos suados.
E enquanto estiver em pé…
ele vai continuar entrando na fila.
Nem que seja só pra andar no carrossel mais uma vez.
ao som de “You Know You’re Right” – Nirvana
CENA DE ABERTURA
Câmera baixa. Quarto escuro.
Silêncio absoluto.
Só a respiração de Lázaro.
A música começa, arrastada.
Ele escreve um bilhete.
Fecha o zíper da mochila.
Apaga o histórico do celular.
Desativa as notificações.
Mentiu pra mãe.
Disse que ia dormir na casa de um amigo.
Mentiu pro amigo.
Disse que ia passar o fim de semana com a mãe.
Ninguém sabia.
Mas ele sabia.
Hoje seria a nona tentativa.
Antes de morrer, você precisa fingir que tá bem.
Dar “bom dia”.
Responder mensagem.
Mentir sobre o destino.
Fingir que vai voltar.
Lázaro mentiu pra mãe.
Pro pai.
Pros amigos.
Pros seguidores.
Ninguém sabia.
Mas ele já tinha se despedido.
De todos.
A cada tentativa,
era a mãe quem morria um pouco.
Aquela mulher forte,
com os olhos alegres,
as mãos fracas de tanto fazer comida e orar.
Ela nunca desistiu.
Mesmo quando o filho queria ir embora.
Ela dizia:
— “Volta, meu filho. Nem que seja só com metade de você, mas Volta.”
E ele voltava.
Sempre voltava.
Mas voltava mais leve,
mais pálido,
mais fragmentado.
Você precisa de estratégia.
Precisa esconder o plano.
Apagar rastros.
Calcular o tempo.
Morrer cansa.
E é por isso que muitos desistem.
Às vezes, o que impede o fim
não é a esperança —
é a exaustão de tentar morrer direito.
Antes de morrer,
Lázaro já tinha morrido tantas vezes:
Quando foi excluído do rolê.
Quando ouviu que era “doente demais pra amar”.
Quando perdeu o pai e sentiu alívio.
Quando leu que “a bipolaridade é coisa de gente fraca”.
Quando se olhou no espelho e só viu um corpo inútil.
Morreu socialmente.
Espiritualmente.
Artisticamente.
Morreu tantas vezes que se acostumou com o luto de si mesmo.
Não é vontade de morrer.
É vontade de nunca ter existido.
Parar de fingir.
Parar de tentar.
Parar de fracassar.
A morte era só um botão de eject Cósmico.
Um fim.
Um ponto final no agora.
Mas viver também era uma frase sem ponto.
Um loop eterno de vírgulas e reticências.
“Se você está lendo isso, é porque eu falhei de novo.
E por falhar, talvez ainda haja algo aqui.
Um fôlego.
Um grito.
Um poema.
Eu não sou exemplo.
Não sou mártir.
Nem caso clínico.
Eu sou só alguém que quis desaparecer para sempre.
E por algum motivo…
ainda estou aqui.
Me desculpe, mãe.
Me desculpe, mundo.
Mas, sobretudo,
me perdoa, Lázaro.
Porque mesmo desejando o fim…
você ainda escreveu tudo isso.”
[FIM DO CAPÍTULO 10 – MORTE]
ao som de “Jumpsuit” – Twenty One Pilots
Depois da nona tentativa,
não veio a redenção.
Nem um sinal do céu.
Nem um abraço redentor.
Veio só o cansaço.
O corpo suado.
O quarto abafado.
E a consciência de que a morte — mesmo quando falha — deixa marcas irreversíveis.
A cama vira altar.
O espelho, sentença.
O silêncio, anestesia e vozes de alguém.
Você não sai da morte pra vida.
Você rasteja da beira do abismo
pra dentro de si mesmo.
E isso dói mais do que o fim.
Não há glamour.
Não há luz.
Não há milagre.
Só um corpo ferido
tentando lembrar como se faz o arroz com feijão,
como escova os dentes,
como olha nos olhos do próprio reflexo sem quebrar o vidro ao estremecer.
E é aí que começa o autocuidado:
não como rotina de skin care ou meditação com incenso,
mas como a arte suja e lenta de não se matar hoje, nem dia seguinte e além.
Só por hoje.
Só mais esse dia.
E amanhã?
Talvez...
Mas agora,
respira, bb.
Porque o luto de estar vivo
é também o primeiro passo
de quem — por algum motivo —
ainda está aqui.