ao som de “Stand By Me” – versão de Ben E. King
Tela branca.
Um céu lavado de luz.
Risos estourados.
Um porta-malas que não fecha.
Uma filmadora VHS da Panasonic.
Um tênis encardido sendo amarrado com dente.
O mapa aberto sobre o capô de um carro velho.
E Lázaro, 17 anos, com a cara enfiada no vento da estrada.
Foi ali, naquela primeira viagem com os amigos,
que Lázaro aprendeu o que era ser livre sem pedir licença.
Dormiu mal numa barraca furada.
Comeu bolacha de água e sal por três dias.
Se queimou no sol de Iguaba,
lavou o corpo no rio gelado de Lumiar,
fumou em um abrigo nuclear em Angra,
vomitou de rir em Cabo Frio,
dançou de madrugada em Búzios,
e nunca mais foi o mesmo.
Eles cantavam alto no banco de trás,
batucando nos bancos,
vento batendo no rosto, mãos batendo um ritmo.
Cada curva da estrada era uma curva da alma se abrindo.
Foi nessa primeira fuga,
nessa primeira travessia pra longe dos olhos dos pais,
que Lázaro descobriu como era ser ele mesmo entre outros.
E mais: como era ser aceito.
Respeitado.
Querido, mesmo sendo queer.
Mesmo sendo estranho.
Mesmo sendo ele.
Ele, o menino das palavras complicadas,
o das crises no meio da festa,
o que sumia por horas no mato e voltava com uma flor na orelha.
E ainda assim, eles esperavam por ele.
Guardavam comida.
Deixavam um lugar no banco.
Riam das mesmas piadas pela décima vez.
Angra, Iguaba, Lumiar, Cabo Frio, Búzios…
Depois Chapada dos Veadeiros.
Depois Cachoeira Alta, Minas.
Depois Bahia — ah, Bahia!
A Bahia ensinou que o tempo pode derreter.
Que o corpo dança melhor quando esquece tudo.
Que o riso pode durar dias.
E que a amizade verdadeira resiste ao sal, à estrada e à ressaca.
Essas viagens valeram por toda uma eternidade.
Pelo simples fato de terem acontecido.
Pelo milagre de terem sido vividas.
E toda vez que Lázaro lembra,
o corpo treme.
Um arrepio.
Um eco.
Um calor no peito.
Como se ainda estivesse lá.
Como se nunca tivesse voltado.
ao som de “My Friend” - Groove Armada
A amizade é um milagre que não pede fé, só coragem para estar ao lado.
Eu lembro da primeira vez que achei que ia sumir do mundo.
Estava na adolescência, os primeiros pânicos, a primeira sombra crescendo dentro.
Eu me escondi no quarto escuro.
E meus amigos alugaram uma van.
Viajaram duas horas só pra me ver.
Não me pediram pra melhorar. Só ficaram ali.
Eu lembro. Isso me salvou.
Tive amigos que pagaram passagens, hospedagens, empregos.
Tive amigo que virou fiador do meu teto.
Que comprou carne pra minha casa no governo do ódio viral.
Que dividiu o pouco pra que eu tivesse um pouco também.
Cada um desses gestos era uma prece material.
Um milagre sem altar, sem terço, sem vela.
Só gente. Gente que ama gente na prática.
Tive amigos que não sabiam meu nome real.
Só o meu vício favorito.
A batida que me fazia dançar.
Não sabiam das dores, e eu não perguntava pelas deles.
A gente se reconhecia pelo olhar e pela brisa.
Era o bastante.
Rimos tanto.
E isso também é amor, mesmo que com data de validade.
Teve aquele amigo que amei como não devia.
O primeiro homem que eu quis fazer amor.
O que eu imaginei fugir com ele para uma ilha deserta e,
nunca mais voltar.
Fiquei de quatro, literalmente.
E me levantei partido.
Mas ainda assim grato — porque ele me fez desejar.
Tive amigos que joguei no altar.
Dei tudo. Tempo, atenção, versos, conselhos.
E eles foram embora sem um aviso.
Me deixaram falando sozinho no WhatsApp.
Me silenciaram como se eu fosse um spam emocional.
O amigo anarquista.
O ex-namorado professor.
Os que viraram pais e esqueceram que eu existo.
Nunca pra padrinho, me convidaram.
Nunca lembraram que eu também era família.
Nunca pediram um livro meu pra ler com os filhos deles.
Foi aí que eu entendi que o esquecimento também é uma forma de violência.
E que o silêncio é um tipo de luto que não tem velório nem aplausos.
Amizade, às vezes, tem validade de dez anos.
Depois, em outros dez esfria. Mais dez, vira saudade.
Um avatar minúsculo numa tela cheia de notificações.
Dizem que fui eu que me isolei.
Mas estou sempre online.
Eu avisei: é só me chamar, que eu apareço com bolo e café.
Ninguém chama.
A vida não é um morango pra quase ninguém.
Se você for meu amigo, mesmo que não me fale mais,
saiba que eu te amo e te guardo.
Guardo tua gargalhada, teu conselho, tua mão estendida.
Mas também guardei a tua ausência.
E não escondo mais isso atrás de memes e coraçãozinhos.
Te perdoo.
Mas não esqueço.
A amizade me salvou.
E também me matou aos poucos.
Mas ainda danço com as memórias.
Ainda sorrio com os fantasmas.
Porque mesmo que tudo acabe…
foi real pra mim, tá ligado.
[FIM DO CAPÍTULO 3 – AMIZADE]
ao som de “1979” - Smashing Pumpkins
Primeiro, você percebe o sumiço nas entrelinhas.
A resposta que demora.
O áudio que nunca chega.
A figurinha usada como desculpa.
Depois, vem o silêncio completo — mas educado.
Ninguém te bloqueia.
Só te esfria.
E você tenta se convencer:
"Está todo mundo no corre, ocupado."
Mas, no fundo, você sabe.
As fotos continuam saindo.
Os encontros continuam acontecendo.
Os aniversários continuam sendo comemorados.
Só que sem você.
E o pior: ninguém pergunta se você está bem.
Porque talvez eles já presumam que você não está.
E ninguém quer lidar com a dor dos outros quando a própria está no limite.
Então você para de mandar mensagem.
Espera que sintam sua falta.
Mas ninguém sente.
E assim começa o abandono.
Não com um adeus justo.
Mas com um sumiço frio.